Pa(i)z.

escuridao

É a resposta número um das pessoas em início de análise, quando questionadas sobre seu desejo. Você mesmo já deve ter chegado a uma conclusão parecida, estando ou não freqüentando um analista. Normalmente, está resposta vem fácil, quase em um automatismo, quando estamos no olho das aflições e abalos da vida. Então, um sujeito diz querer paz. Quase sempre acompanhada de um “só” antes do substantivo, o que faz da afirmação uma pergunta meio ingênua: “será possível que estou pedindo muito?”. Clemência! Para qual condenação?
Já perdemos a essência das coisas, as coisas em si, quando começamos a falar. E já perdemos a comunhão plena com um objeto de amor a partir de uma operação, um corte, necessário para que possamos tomar algumas rédeas na vida. No lugar desta plenitude, que uns vão falar que existiu em uma infância imemorável e outros que nunca passara de um delírio, sobra um oco e uns restos passando por ali.
Acontece que passamos uma vida fazendo toda uma engenharia de tubulação para tentar garantir que alguma matéria deslize de melhor forma possível pelas paredes destes ocos, de acordo com o contato, sempre contingencial, com as matérias do mundo. O que passa por aí produz gozo, desejo, felicidade, e também sofrimento, angústia, deriva. O que você quer? Como você quer viver? É um esforço de engenharia de fluxos e cortes.
Temos, então, que o que satisfaz é o fluxo das coisas (e não as coisas) e o que direciona e, logicamente, faz o mesmo existir, são os cortes, tudo a partir de encontros aleatórios. Em suma, somos um pedaço de carne ambulante, com um furo no meio, jogados no mundo desprogramado. Que desespero! Mais desespero ainda quando começa-se a dar conta de que as matérias do mundo não se acoplam e não estacionam no oco. Só passam. Talvez por isso nada acontece sem que criemos uma história em cima desta condição, um sonho, deuses… E pais. Claro, os pais existem de fato, um homem, uma mulher, uma gozada e, assim, você. Mas falo de pais enquanto função, em uma dimensão ficcional, que aparecem no momento em que você conta de si e dá sentidos. Estes, pais, funcionam como deuses. Nada mais interessante para contrapor o horror e o tédio de ser um pedaço de carne furado do que a existência de um deus. Por que? Entre outras funções, deuses definem destinos e ter um destino é ter a esperança de restituir a satisfação e o objeto perdidos, aquela que não se sabe se esteve ou não um dia passando por ali. De transformar os restos, que acabam sendo pistas, na obra original. Para Freud, o destino é um substituto dos pais.
Esta vontade de paz, especificamente (muito comum), é um exagero de sentido. Mas também um excesso de culpa de quem se acredita condenado, diante de sua ficção, por histórias, destinos, deuses e pais.

fotinha lucas
Lucas Vinco é psicólogo em Ribeirão Preto, psicanalista, mestre em Saúde Pública pela Escola de Enfermagem da USP, professor de psicologia e gestão de pessoas na REGES – RP, psicólogo na Saúde Mental e nos Recursos Humanos na prefeitura de Sertãozinho.

Um comentário sobre “Pa(i)z.

Deixe um comentário